domingo, 14 de abril de 2024

Oração ao mar

Singrai
Vós que sois ar e espuma
Alheai-me do parco espírito
Inumado em sepultura
 
Dai-me
Profundezas e corais
As desrazões pujantes
De querer-ser a mim
 
Abençoai-me
De profundezas e azuis
E pélagos cálidos
 
E não permitais
Ao velho corpo
Apartar-se das águas
 
Para enfim o derradeiro leito
Marinho ser a vós
Entregue e bento
 
Caio Bio Mello
06/04/2024

sábado, 9 de dezembro de 2023

Órbita

Sou 

O pírico-atômico

Da reentrada lunar

Rompante em cacos 

E cores cristais 


Sou 

O arco-incêndio

Banho de vista 

Encharco primaveril

Onírico presságio 


Serei

Caótica profundeza 

Semente estratosférica 

Pulverizada


E nos sítios e areais

E nos rostos e risos 

Arderei sereno 

A fecundar a vida 


Caio Bio Mello 

09/12/2023

Vulgo

Vejo-te sempre 

Em várias vias da vida. 

Não me vês, porém, 

Ao que a vida te negaste 

A vista. 

Viso-te muito 

Não me vês, por sorte,

Porque se pudesses me avistar 

Vertiginar-te-ia 

Ao ver-me assim 

Varado pela vida,

Vagante 

No silêncio das desventuras. 

Melhor assim:

Mais vale a fábula que vislumbras

Do que a visão que envenena. 


Caio Bio Mello 

25/11/2023

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Sit tibit terra levis

Ouço o rosnar dos tambores
E o roucar
              Dos inumados
 
Arranhando caixões
No vão esmero
              De desencobrir
O peso derradeiro
Da terra
              Que lhes sepulcra.
 
Mal sabem:
Leve é a terra e pesado o ar.
 
Caio Bio Mello
09/11/2022

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Salpícula

O grânulo são
Embraseia ao tocar a água
E na imensidão se radícula
 
Desincorpora
E desperta
Pertencente ao cosmo
Abissal dos mares
 
Já não carrega o árduo
Fardo de salgar ou dessalgar
 
Apenas toca os lábios
No beijo suave
Da imensidão.
 
Caio Bio Mello
21/07/2022

Circunmundo

Ouço-te
Nas ranhuras dos tijolos
E sinto-te vibrar
Como se eu próprio fosse sulco
 
Desnecessito de olhos para ver-te
Pois me basta pulsar
E eu pulso
 
Este sangue que é meu
É teu também
Fúria de extravasão
 
E só eu sei
Do dia que há de chegar
Em que outros poderão sentir-te também
Nem que seja pelo medo
 
Quando estiveres
Nas ruas de lodo rubro
Marcando as calçadas com entranhas dos corpos inertes
Que teimam em não ver.
 
Caio Bio Mello
18/09/2022

Fender

Por anos limou o Rio
As pedras e sulcou trilha
Para espraiar no mar
 
Súbito vieram afobadas pessoas
Que subiram ágeis barragens
E sufocaram o fluir da correnteza
 
Esperou o paciente Rio
A noite pesar nas pálpebras
E ao cair o sono
O Rio correu água nos corpos
 
Preencheu os pulmões de lodo
Embaçou os olhos de lama
Rasgou caminho na carne
 
E na manhã seguinte
Viu-se o leito de morte dos afogados
E o leito do Rio a reespraiar no mar.
 
Caio Bio Mello
20/07/2022